segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Ressocialização na cadeia é possível?

REALIDADE OU UTOPIA

Tema polêmico, a ressocialização de presos no sistema penitenciário vem sendo cada vez mais discutida entre especialistas do Direito Penal. Enquanto mecanismos são criados para possibilitar a reintegração do detento ao convívio em sociedade, correntes contrárias alegam que, sendo a prisão um castigo, a recuperação em alguns casos seria impossível. Por outro lado, um ponto é comum: a humanização do cárcere e a garantia da integridade física e moral, direitos expressos na legislação, em específico na Lei de Execução Penal (LEP).

Com opiniões bastante divergentes, o ex-diretor geral do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), Maurício Kuehne, e o promotor de Justiça de Goiânia, Haroldo Caetano da Silva, falaram com exclusividade à Gazeta do Povo durante o 2º Encontro de Ressocialização, promovido pelo Conselho da Comunidade e pela Corregedoria de Presídios, nos dias 28 e 29 de maio, em Foz do Iguaçu.

ENTREVISTA





Haroldo Caetano da Silva, Promotor de Justiça da Vara da Execução Penal de Goiânia, professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Goiás









Maurício Kuehne, ex-diretor Geral do Depen, promotor de Justiça aposentado, professor da Faculdade de Direito de Curitiba e da Escola Superior do Ministério Público






Como os senhores definem a ressocialização?

Silva – Ressocialização é um discurso construído para querer convencer as pessoas de que a prisão é algo positivo, algo capaz de transformar um criminoso em um não-criminoso. Essa teoria tenta de alguma maneira dar à prisão o que ela de fato não pode produzir: um resultado positivo. É importante que haja políticas públicas funcionando dentro do sistema penitenciário. O preso tem que ter acesso ao trabalho, ao lazer, à saúde, à educação, à assistência jurídica e tudo mais. Porém, o espaço para se falar em inclusão social é um espaço que deve acontecer um pouco antes, numa época em que o crime ainda não tenha sido cometido, por exemplo, na época da infância e da adolescência. Falar que a prisão vai recuperar um homem que nunca teve acesso a esses serviços, é um tanto quanto hipócrita.

Kuehne – Ressocialização é o compromisso que o Estado tem, legalmente falando, de disponibilizar mecanismos para o privado de liberdade, a fim de que possa ter uma adequada formação educacional e profissional que não teve, daí a razão maior para ele ter delinqüido. Com o Estado propiciando isso, ele vai ter condições de enfrentar de maneira diferente o mundo.

A prisão recupera criminosos?

Silva – Não. Nem mesmo a melhor prisão do planeta recupera pessoas. Ela não tem a capacidade de transformar um homem ruim em um homem bom. A prisão é espaço única e exclusivamente de castigo. O que precisamos é conceber essa prisão como espaço de castigo e tentar humanizar esse espaço.

Kuehne – Sim. A prisão, desde que contemple os mecanismos necessários, possibilita a recuperação do indivíduo sim. Se ela não possibilitasse, a reincidência seria de 100%. E, na medida em que esta taxa não chegou a este patamar, é porque há indivíduos que vão para a prisão, cumprem o castigo e retornam adequadamente para a sociedade. Ele apreendeu as normas de comportamento social.

Por que a reintegração não acontece como é idealizada? Existem mecanismos e políticas que auxiliem nesta recuperação?

Silva
– É incoerente falar em recuperação, em ressocialização, retirando o homem do convívio social. É como querer ensinar alguém a nadar, levando-o para um lugar seco. Essa incoerência joga por terra o discurso da ressocialização que quer transformar a prisão em um espaço bom. Essas políticas que devem existir dentro da prisão se constituem não como instrumento de ressocialização, mas como garantia de direitos do preso. Isso não deve ser um favor ou um benefício que a ele o Estado dá, mas um direito que o Estado reconhece a este preso. Existe uma incoerência grave no modelo de regime de progressão da pena adotado no Brasil. Os regimes aberto e semiaberto impõem uma solução muito paradoxal. O que para a sociedade significa impunidade, para o preso é algo muito severo porque o sujeito tem que todos os dias abdicar da sua liberdade e se recolher a um presídio depois de um dia inteiro de trabalho. Poderíamos discutir em nível nacional a abolição desses dois regimes já que eles não representam punição aos olhos da sociedade e para o preso representa apenas um castigo severo diário. Esse regime em que o preso é perigoso só à noite deveria ser repensado.

Kuehne – Existe sim uma política pública adequada. A Lei de Execução Penal (LEP) foi convenientemente estruturada para que gradativamente o indivíduo, depois de condenado a uma pena privativa de liberdade, venha a retornar ao meio social. Por isso a razão dele iniciar a pena no regime fechado e, quando cumpre o percentual de um sexto dessa pena, progride para o regime semiaberto. No regime semiaberto, essas políticas irão se ampliar na medida em que o indivíduo tem a saída temporária e o direito ao trabalho externo. No regime aberto, ele está convivendo no meio livre, mas ainda sujeito a determinadas condições. Esse regime progressivo estabelecido por nossa lei visa exatamente fazer com que o indivíduo se integre à sociedade da qual ele se viu alijado.

O ideal, portanto, seria individualizar o processo?

Silva
– Nós precisamos primeiramente questionar alguns conceitos estabelecidos. Essa ideia de ressocialização pelo cárcere é algo que já se comprovou não existir. Em 200 anos de experiência, a prisão em nenhum momento conseguiu transformar um homem ruim em um homem bom. Se o sujeito sai da cadeia com valores mais bem elaborados, isso depende dele próprio, de ter esse objetivo e de trabalhar no sentido de se autoeducar, de encaminhar sua história pessoal para outro rumo, que não o do crime. Partindo disso, poderemos repensar como utilizar este instrumento chamado prisão, que avilta, que estigmatiza, que gera mais violência. É preciso estabelecer um mecanismo que utilizemos com menos intensidade. A prisão deve ser reservada a casos em que não exista outro tipo de possibilidade ou outra resposta punitiva.

Kuehne – Falamos em ressocialização quando pensamos tão somente naquele que está hoje privado de liberdade. Mas, nós temos que enxergar o sistema punitivo dentro da amplitude que ele contempla, com as penas punitivas de liberdade e também com as penas restritivas de direitos. Pode-se integrar à sociedade ou ressocializar, por exemplo, o indivíduo que cometeu um acidente de trânsito culposamente – que dirigia em alta velocidade ou embriagado. Este indivíduo vai responder a um processo e ser condenado. A pergunta é: nesse caso é necessária uma pena de prisão? O ordenamento jurídico e eu respondemos: não. Mas, há de haver mecanismos para fazer com que aquele indivíduo venha a se integrar à sociedade porque em um determinado momento ele descumpriu a norma. Uma prestação de serviço à comunidade ou uma interdição temporária que lhe possa ser aplicada seriam suficientes. Esse castigo servirá de lição, sem que seja privado de liberdade. Ao mesmo tempo em que é castigado, tenderá a fazer com que sua má conduta não se repita. Se quiser aceitar, ótimo. Se não, vai reincidir. Não posso obrigá-lo, mas tenho que colocar os mecanismos à disposição dele.

Como a sociedade vê o trabalho de tentativa de recuperação do preso?

Silva
– O preso é visto em qualquer lugar com muito preconceito. Mesmo depois de cumprida a pena a que foi condenado, ele continua sendo visto como um bandido, um criminoso, e ela se fecha a ponto de não conseguir se recolocar em uma atividade lícita, por exemplo. A porta que se abre para quem não tem nenhuma política de acolhimento após a liberação é a porta do crime. Essa rejeição também contribui para os índices de reincidência.

Kuehne – Nesse ponto, a sociedade é hipócrita e paradoxal. Por um lado quer punir o criminoso, mas por outro, quando esse criminoso termina de cumprir a pena, não quer mais vê-lo. A sociedade diz não porque não conhece a realidade dos cárceres brasileiros, o sistema punitivo. A sociedade só vai entender isso quando alguém da sua família ou alguém que sempre procurou estigmatizar o preso venha ele próprio a delinqüir. Mas, aí já será tarde.

Que papel o Conselho da Comunidade – órgão de execução e fiscalização criado pela LEP – tem na mudança dessa visão?

Silva
– O envolvimento da comunidade é essencial para o aprimoramento da prática com que se pune o ato criminoso. Da mesma maneira é importante a participação comunitária para reduzir a distância entre o cárcere e a sociedade livre. É função do Conselho da Comunidade é tentar servir como elo de aproximação, ao mesmo tempo buscando a inclusão do egresso à convivência em comunidade, da mesma forma que o patronato e os programas pró-egressos, destinados exclusivamente a este recentemente saído da prisão, a exemplo do que acontece no Paraná, como poucos estados no país.

Kuehne – O Conselho da Comunidade, como o próprio nome indica, representa a ligação necessária que deve existir entre a sociedade e o sistema punitivo. Mas, a sociedade ignora os conselhos da comunidade porque não é informada como esses órgãos podem ser atuantes no campo da execução penal. Temos aqui em Foz do Iguaçu um exemplo de como o conselho pode e deve se envolver com a questão carcerária. Não fosse essa ligação, não se pensaria na construção da Penitenciária Feminina, prevista para os próximos meses, e outras unidades como a Penitenciária Estadual e o Centro de Detenção e Ressocialização. Viveríamos eternamente com o problema da Cadeia Pública Laudemir Neves. Quando o filho de alguém com interesse direto nisso fosse levado ao cadeião, a sociedade talvez acordasse para o problema.

Os senhores acreditam na ressocialização?

Silva
– Não. A ressocialização é um sofismo, um discurso construído com o objetivo de dissimular o cárcere e a violência que ele apresenta. Prefiro apostar na humanização dos espaços em que a prisão se dá. Esse espaço não pode ser simplesmente um depósito de pessoas, como lixo humano, como percebemos em diversos estabelecimentos prisionais. É preciso humanizar a prisão, restringir a utilização da prisão. O Brasil utiliza a prisão para crimes que muitas das vezes permitiriam outras soluções. Precisaríamos reformular essa cultura do aprisionamento. A sociedade tem um apego extremado à prisão e esse apego se reflete na atuação do sistema punitivo e ao mesmo tempo essa mesma sociedade tem um medo muito grande da liberdade. Medo que se reflete na postura dos agentes do sistema repressivo, os quais têm dificuldade de conceder liberdade para aquelas pessoas que estão presas simplesmente aguardando julgamento.

Kuehne – Sim. Acredito na ressocialização, mas prefiro chamar de integração. Isso desde que o Estado providencie condições para o adequado cumprimento de uma pena. O Estado tem que criar espaços para o trabalho e para o estudo do preso, além de lhe garantir as outras modalidades previstas em lei. Se o Estado não o fizer, não adianta impor mecanismo de ressocialização, pois não vão funcionar. Mas, quando o Estado se acautelar e cumprir aquilo que está contido na LEP – já adotada há 25 anos – nós começaremos a ver, sem dúvida nenhuma, que a ressocialização natural será alcançada.

Recentemente acompanhamos a polêmica sobre a utilização de presos para a transferência dos processos na mudança do Fórum de Justiça de Curitiba. Esse trabalho pode ser feito pelos detentos?

Silva
– A recusa em utilizar essa mão-de-obra representa muito mais preconceito do que conhecimento da realidade dos fatos. O preso quer trabalhar e normalmente o Estado não oferece opção de trabalho, daí essa ociosidade que impera nos presídios. Quando se dá uma oportunidade trabalho, mesmo que seja para auxiliar nos trabalhos do Fórum e nas varas criminais, vejo isso como elogiável. Isso deve servir para mostrar inclusive que essas pessoas não são bichos, são homens e mulheres que eventualmente cometeram um erro, que hoje estão cumprindo seu castigo e que querem trabalhar. Se esse trabalho é possível e é no Fórum, não vejo nenhum inconveniente em utilizar tal mão-de-obra carente de trabalho. Isso mostra um pouco de desprendimento daquele preconceito de que falamos e ao mesmo tempo mostra coragem para indicar à sociedade que de fato essas pessoas precisam trabalhar.

Kuehne – Eu fico triste quando vejo segmentos da magistratura e do Ministério Público, que devem ser os primeiros a fazer com que a LEP seja efetivamente aplicada, resistindo a uma possibilidade como essa por meio da qual os presos podem mostrar o seu trabalho. Qual comprometimento pode haver ao se transportar caixas fechadas com milhares de processos? Será que ele, o preso, vai procurar o seu processo, colocar fogo, eliminá-lo? É um preconceito abominável sob todo os aspectos. A sociedade deveria aplaudir de pé uma iniciativa como esta e jamais rejeitá-la. A sociedade e os poderes que se manifestaram contrários estão sendo hipócritas.

Entrevista produzida para o Jornal Gazeta do Povo
Edição 15 de Junho de 2.009
Fabiula Wurmeister
Conselho da Comunidade

Acesse a versão final das entrevistas no link abaixo:

http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=896270&tit=Ressocializacao-divide-especialistas

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