sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Revista íntima: a pena às não condenadas



São cinco horas-da tarde na praça ao lado do terminal Barra Funda, na capltal paulista. É uma sexta-feira e muitas mulheres começam a aparecer carregadas de sacolase crianças, algumas chegaram bem mais cedo. O comércio de vendedoreas ambulantes no local também é muito específico. Sanduíches naturais, chocolates, sacolas transparentes e cigarros, muitos cigarros. E é assim toda sexta-fira na praça. Estas mulheres enfrentarão seis, nove horas de viagem para chegar aos seus destinos. Mirandópolis, Reginópolis, Hortolândia, Lavínia, Ribeirão Preto, Paraguassu, Avaré... Em cada canto da praça, um itinerário. Bolsas são marcadas com os nomes e a espera é longa. Enquanto isso, muita conversa. São namoradas, esposas, mães que cumprem pena junto com seus maridos e filhos. Muitas mulheres, muitas histórias. Todas elas se submetem a revistas íntimas humilhantes, a sacrifícios financeiros e pessoais, e mantêm segredos com a família e amigos para continuarem sustentando um relacionamento com presos. Patrícia* tem 22 anos, mas encara essa realidade desde os 18, quando o seu namorado, dois anos mais velho, foi preso. "É horrível, terrível. Já desisti, voltei a visitar e engravidei com 19 anos. Amo muito ele e vou esperar." E assim é também para Letícia*, 31, Elaine*,27, Márcía*,24, Maria*, 62, Selma*, 42, Gláucia, 23, Karina*, 22, Sílvia,47, e muitas outras mulheres que vivem entre o amor e as grades.

A espera de anos e horas

Ao chegarem à praça, elas pegam uma senha que vale para a entrada no presídio. Selma, por exemplo, preferiu chegar às 13h para garantir a senha número 1 na visita ao marido de 40 anos, preso há sete. Saindo entre as 20 e 22h, costumam chegar às cidades onde estão os presídios entre 2 e 4h da manhã. No estado de Sao Paulo existem 85 penitenciárias maasculinas, incluindo os Centros de Detenção Provisória, que acabam nem sendo tão provisórios assim. Sem contar as colônias e as cadeias públicas, onde estão os presos prestes a sair em liberdade.

Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, 85% dos 134.066 presos no estado recebem visitas. As mulheres viajam de ônibus, de carro, de vans ou vivem próximas aos presídios onde estão seus maridos. Os cuidados nas viagens são muitos. Sílvia, que está com o marido de 43 anos preso há seis, explica que quando pode ir de carona com algumas amigas de carro, ela prefere, mesmo gastando urn pouco mais. E explica o motivo. "Quando acontece alguma blitz no caminho algumas mulheres que estão levando drogas podem jogar nas suas coisas e daí você leva a culpa. Conheço muita mulher que foi presa por conta das outras." Por isso, as orientações de quem organiza os ônibus e também dos presos para o uso de sacolas e bolsas plásticas transparentes. Na blitz, as mulheres são levadas à base móvel e despidas. Karina, que teve seu primeiro contato com o sistema penitenciário há três anos, conta que algumas vezes "teve até cachorro farejando a gente. É muito constrangedor. E ainda tem que passar por isso de novo na cadeia".

Ao chegarem aos seus destinos na madrugada, não há descanso. A maioria vai para as pensões e começa a se preparar. Poucas conseguem dormir antes de ir para a porta da cadeia. E quem prefere não compartilhar este momento e espaço com outras mulheres fica em hotéis ou chega até a alugar casas. Mas estas são raras.  Nas pensões, as mulheres contam que não param. Cozinham, se arrumam, trocam fraldas. Algumas preferem levar toda a comida já pronta. "É criança chorando , mulher cozinhando e até enrolando droga...", diz Karina, que evita ficar em pensões por recomendações do namorado. Já para Elaine, que acompanha o marido de 30 anos, preso há seis, conta como é seu cotidiano. "A rotina é ir para a pensão, arrumar o jumbo e ir pra porta da cadeia 'pegar veneno'. Mas pensa? domingo ninguém quer estar em porta de cadeia, quer é fazer um churrasco com os amigos."

Mas há quem não vá para pensão nem para abrigo nenhum. As histórias de dormir na porta da cadeia são muitas. A relento ou em barracas. Patrícia passou um tempo indo visitar o marido e acabava dormindo numa cobertura em uma avenida bem próxima ao presídio para pegar uma senha menor. "Os carros ficam passando, cachorro latindo, Já ouvi muito comentário. Me chamaram de puta, de guerreira... " conta. "Imagina tudo isso em dia de chuva? Mulher de preso não existe pra eles", afirma Selma.

As revistas vexatórias

Ainda às quatro da manhã, as filas nas portas dos presídios já estão formadas e continuam a crescer. A pior parte ainda está por vir. A revista íntima e a revista do jumbo. Com o aumento do número de celulares dentro dos presídios, em 1997 o govemo do estado de São Paulo passou a implementar as revistas íntimas que consistem no desnudarnento e agachamento. Maria, de 62 anos, que está com seu filho de 31 preso há 10 anos, se enfurece."É muita humilhação. Tem ginecologista que não faz issol É a maior falta de respeito."

Mesmo sendo proibido realizar uma espécie de exame de toque, alguns relatos escapam da boca das mulheres. "A gente tem que agachar três vezes de frente e três vezes de costas. Quando implicam com alguma pessoa é um constrangimento enorrne. Daí elas querem que você abra bem as pemas, abrem com a mão, pois querem ver lá dentro mesmo", conta Márcia, que entre términos e voltas com o namorado de 27 anos enfrenta o final de semana em porta de cadeia há oito.

A revista é para todos. As crianças também passam pelo desnudamento. Patrícia nos conta que uma vez uma mulher quase foi linchada pelas outras na cadeia. "Tinha uma criança que não parava de chorar na fila. Chegando na hora da revista, a funcionária tirou a fralda e tava cheio de sangue. Era a droga que a mãe tinha colocado na vagina da bebezinha. Esse monstro foi preso na hora."

Para Letícia, a revista é com certeza a pior parte. O marido de mesma idade já está preso há oito anos. "A funcionária chama até cinco pessoa de uma vez. Pede pra abrir a boca, mexe no cabelo. É horrível!". Por usar aparelho, Karina é obrigada a, passar pelo detector de metais apenas de calcinha duas vezes, uma ao entrar e outra ao sair. Já Selma conta que inúmeras vezes foi impedida de entrar com o seu aparelho auditivo. E é sempre a mesma agente que implica com ela. "Sem ele eu não escuto nada não é um luxo, não é um sapato novo é um aparelho de extrema necessidade pra minha vida", lamenta.

Segundo o diretor do Depen, Airton Michels, "o Estado deve pelo menos reduzir as dificuldades que mulheres encontram para realizar as visitas. Nós temos que investir em tecnologias para impedir que as mulheres tenham que ser submetidas a estas revistas vexatótias". Mesmo assim, revistas são aplicadas em todos os presídios do estado de São Paulo.

Para Gláucia, nem é a revista íntima sua maior indignação. 'A maior humilhação é ter que jogar comida fora. Você tira da sua casa, da boca do seu filho. Colocar a comida em plástico também não dá. Eu não tô levando comida pra cachorro", protesta. Márcia também passou pela mesma situação.'"Em muito lugar que passei, o pessoal pedia para tirar a comida do tupperware e despejar dentro dos saquinhos plásticos. Eles não são porcos para comer lavagem." 

Romances clandestinos


Todas essas mulheres desejam o mesmo para suas vidas: viver corn seus mandos e namorados bem longe da rotina imposta pelo sistema prisional. Seus filhos, concebidos em sua maioria nas visitas íntimas em cadeias, especialmente as moças mais jovens, acham que estão indo visitar seus pais no trabalho. Alguns pais, como é o caso de Letícia, nem sabem que suas filhas enfrentam esta rotina há anos. "Da minha família ninguém sabe. Minha mãe morreu há 17 anos e eu estava morando sozinha. Agora que voltei a morar com meu pai, ele acha que estou indo para um sítio com os meus amigos" confidencia. Os pais que sabem resistem, afinal não foi este o futuro que planejaram para suas filhas. Alguns acabam respeitando a escolha delas e até ajudam, como a mãe de Karina. "Não quero isso pra ela. Minha filha, mulher de porta de cadeia.

Queria que ela arrumasse um rapaz aqui fora. Engraçado é me ver na sexta-feira à noite cozinhando salgados para ela levar." Karina garante que os salgados fazem sucesso com o namorado e seus amigos.

A maioria das mulheres conta que esconde o relacionamento com presos no trabalho, na escola e até dos amigos. Muitas afirmam fazer isso por que sabem que se alguma coisa acontecer na empresa, se algo sumir, ou se forem assaltados elas seerão as primeiras suspeitas. Ou mesmo para evitar perguntas e olhares preconceituosos.

Márcia sempre trabalhou e nunca contou para ninguém no serviço. "Que nem eu falo com o meu marido: não tenho vergonha de você, mas não me orgulho do que você fez e de onde você está. O pessoal fala que todo final de semana eu viajo. 'Haja dinheiro!', brincam. Então digo que o meu namorado trabalha longe", alega.

Manter esta rotina também não é fácil para o bolso. Segundo Maria e Selma, o custo em um final de semana é de R$ 300. As passagens dos ônibus da Barra Funda variam entre R$ 60 e R$ 80. As idas na quinta-feira são mais baratas e algumas passagens já incluem a hospedagem na pensão, mas o custo maior é com a compra de comida e utensílios de higiene. Sem elas, os presos têm de se alimentar somente da comida fornecida pela prisão que, segundo teslemunham, é "pior que lavagem" e vem azeda muitas vezes. Quando elas não conseguem arcar com todos os custos, o preso acaba tendo que ajudar. "Ladrão entra de carro importado e sai pedalando, pois gasta tudo com as visitas", diz Elaine "Já tô ficando deprimida de ficar em porta de cadeia", completa.

Neste ambiente é raro ver um homem carregando jumbo. Entre as várias mulheres que estavam esperando a saída dos ônibus, estava seu José, de 63 anos. Ele vem uma vez por mês do Tocantins para visitar seu filho, preso em Paraguassu há três anos. "Sou mãe e pai", diz ele, se referindo à ausência de homens no local. 'Acho que as mulheres sofrem demais. Passam por este sacrifrcio todo, daí quando eles saem chutam a bunda delas".

O RDD aplicado às famílias

Márcia está com 24 anos, seu marido com 27, preso há oito. Ele já mudou diversas vezes de presídio e hoje está em Presidente Venceslau sob o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).

Nas palavras de Michels, o RDD é uma alteração na lei penal para que o preso que tenha cometido alguma falta grave fique isolado dos demais. Esta mudança acarretou também outras mudanças na vida de Márcia. Agora são oito horas de viagem para apenas um dia de visita no final de semana e somente durante quatro horas.

Em Venceslau, todos ficam em um pavilhão dividido por raios. São quatro áreas de visita. Quem não tem visita fica numa cela chamada de contenção, e quem está recebendo alguém fica na cela trancado. "Nos outros presídios a visita é na cela, mas não fica trancado. Quem tem criança, a criança pode ficar brincando no pátio... Lá não, fica todo mundo trancado" explica.

O RDD é aplicado em três penitenciárias no Brasil desde 2003. Muitos defensores dos direitos humanos insistem na inconstitucionalidade do regime. São menos presos em cada cela e apenas duas horas de banho de sol diárias. Márcia conta com indignação o processo para retirar um preso da cela para outra: "Ficam doze caras armados, e encapuzados, com escudos na mão e em posição de ataque.'Eles não são monstros".


Saiba mais:  http://guaiba.ulbra.tche.br/pesquisas/2009/artigos/direito/salao/548.pdf
                  
Fonte e Foto: www.revistaforum.com.br/

Postado por Daniela Felix® no Daniela Felix® em 1/10/2010 10:41:00 PM

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