segunda-feira, 11 de junho de 2012

SISTEMA PENAL: PERNAMBUCO

Pernambuco: presídios controlados pelos presos


LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**


Ocupando a 10º colocação dentre os estados mais encarceradores do país, com uma taxa de 287,40 presos para cada 100 mil habitantes (análise realizada pelo Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes, com base nos números do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional), o estado de Pernambuco possui uma “cultura carcerária” ilegal peculiar.

De acordo com o retratado pelo Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), realizado entre janeiro de 2010 e janeiro de 2011, quem controla as prisões pernambucanas são os próprios presos; um costume antigo e até “eficiente”, que conta com o aval do próprio Estado.

Em Pernambuco situa-se o maior presídio do país: Aníbal Bruno, descrito no Relatório do Mutirão como uma “cidade medieval”. Com capacidade para 1.400 detentos, o estabelecimento abriga cerca de 5 mil presos. Nele, são os próprios detentos que possuem as chaves das celas e controlam quem entra e quem sai dos recintos.

Ali o controle do Estado é mínimo e os agentes penitenciários são poucos. Como uma espécie de “tradição carcerária”, um dos detentos, conhecido como “chaveiro”, em geral processado ou condenado por homicídio, é quem legitimamente controla e ordena o presídio, recebendo, para isso, um salário mínimo do Estado. É ele também quem define o responsável pela venda de drogas no estabelecimento.

São os próprios presos que igualmente cuidam do comércio de alimentos nas 14 cantinas criadas no presídio, na qual os vendedores ambulantes são os próprios reclusos. Aos domingos, a unidade recebe visitantes (que entram livremente no local), chegando a assemelhar-se a um bairro em confraternização.

Não bastasse esta “desordem organizada”, o sistema carcerário de Pernambuco também padece de uma absurda superlotação, dada a ineficiência judiciária do estado.

Na casa prisional de Palmares, foram encontrados 540 detentos onde cabiam 74. Já em Iguaçu, havia 2.363 detentos numa unidade planejada para 426 presos. Em todos os locais, os presos tinham que dormir no chão, nas calçadas, corredores, buracos e até em um canil.

O Mutirão constatou ainda que 85% dos 18,3 mil processos analisados não continham cálculo de pena dos presos. Em meio a esse caos, 956 presos receberam o benefício da liberdade condicional.

Assim sendo, de forma comodista e temerária o estado pernambucano compactua com a transferência de suas responsabilidades àqueles a quem deveria tutelar, controlar e fiscalizar.

Comentários do Professor Luiz Flávio Gomes:

O que acontece nos presídios de Pernambuco (assim como em alguns territórios dominados pelo tráfico, no Rio de Janeiro, por exemplo) é que se chama de Estado Paralelo, que não se confunde (evidentemente) com o Estado de Direito nem com o Estado de Exceção. No Estado de Direito há um conjunto normativo (normas legais, constitucionais e internacionais) que rege o funcionamento da sociedade, sendo aplicado pelo Estado. No Estado de Exceção o grupo que está no poder (legítimo ou ilegítimo) afasta a vigência das regras jurídicas relacionadas com os direitos e garantias fundamentais. Suspende a vigência dessas regras, aplicando outras, totalmente contrárias ao que determinam os comandos normativos do Estado de Direito. No Estado Paralelo algumas pessoas governam determinado território conforme suas regras. Criam as regras, delimitam o território e comandam o funcionamento dessa microsociedade conforme seus desejos ou ordens (ou caprichos). Essa é a situação dos presídios (ou de alguns presídios) de Pernambuco, conforme constatação do CNJ.

A questão grave que está por detrás de tudo é a seguinte: que legitimidade tem a jurisdição (o trabalho dos juízes) nesses locais governados pelos Estados Paralelos? Se os juízes sabem que estão mandando pessoas para esses locais, por que continuam fazendo isso, sem nenhuma contestação? Por que os juízes não se rebelam contra o sistema carcerário caótico que temos? Até quando esses juízes (há exceções honrosas, claro) serão responsáveis ou coniventes com essa situação de degradação profunda do ser humano?

Por que os juízes brasileiros em geral (há exceções dignas de encômios) aceitam a barbárie em lugar de lutar pela civilização? Por que não tentam (coletivamente) mudar essa cultura da depravação e da humilhação? Por que os juízes não lutam pela preponderância do Estado de Direito assim como das regras mínimas (ao menos) da convivência democrática? Até quando seus olhos ficarão vendados? Por que não criam jurisprudências e atitudes alternativas, conformes com os ditames reinantes nos povos mais civilizados? Em vários momentos históricos muitos juízes (da execução) se negaram a cumprir decisões judiciais que mandavam as pessoas para as cadeias? Enquanto os juízes brasileiros não se rebelarem, de forma consciente e civilizada (deixando para trás a barbárie, apoiada democraticamente pela maioria da população, consoante um inconstitucional populismo) nada se pode esperar em termos de mudança de cultura.

Vamos continuar falando e escrevendo sobre o tema, mas sem a expectativa de qualquer mudança. Porque a solução só pode advir dos juízes evoluídos, que terão que tomar uma decisão contramajoritária, mas civilizante (e necessária). Sem o apoio massivo dos juízes nossas vozes são vozes que gritam no deserto. São os únicos que podem (corajosamente) mudar a situação caótica e profundamente infame dos nossos presídios.

Durante vinte anos na Itália (como bem recorda Iñaki Rivera), os juízes dotados de grande coragem e refinada preocupação com a cidadania, se negaram em muitas ocasiões a executar sentenças condenatórias, diante das horripilantes e degradantes condições que ofereciam as instituições carcerárias daquele País. Não se pode imaginar outra atitude dos juízes brasileiros, para alterar o panorama da infamante e degradante situação brasileira. Mas esse movimento terá pouco êxito se for isolado. Os juízes devem atuar coletivamente nessa empreitada duríssima de civilizar nossos costumes e tradições (de total desrespeito às vítimas e aos presos, que são vítimas do cruel sistema carcerário nacional).

*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes e co-diretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me no facebook.com/professorLFG, no blogdolfg.com.br, no twitter: @professorLFG e no YouTube.com/professorLFG.

**Advogada e Pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes

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