Not in my back yard”, ou “não no meu quintal”, é um bordão cantado por urbanistas e ambientalistas americanos, que traduz a reação coletiva à instalação de edificações ou equipamentos tão necessários quando indesejáveis para as pessoas que residem ou têm interesses nas áreas escolhidas para a sede dessas construções. Por mais que todos saibam da necessidade do escoamento das águas servidas, existe uma natural recusa à construção das estações de tratamento nas cercanias das casas de quem usa o referido recurso natural. Igualmente ocorre com o lixo doméstico: os que geram toneladas desse resíduo pedem o recolhimento do material posto às suas portas, mas exigem que seja depositado longe dali, ainda que para fins de reciclagem, pouco importando se o acondicionamento será vizinho à casa de outra pessoa que não deu causa ao monturo.
Os pacifistas, contrários ao uso da energia nuclear, também lançaram mão dessa ferramenta social de repulsa, que por sinal popularizou-se sob o acrônimo NIMBY (primeiras letras da frase emblemática, em inglês), para rechaçar a instalação de usinas de beneficiamento de urânio em determinadas áreas, bem como da construção de tanques para guardar os rejeitos de tal atividade energética.
O tema tem tanta relevância nos dias atuais, que deixou de pertencer somente ao campo da gestão pública, do urbanismo e do ambientalismo, e passou a ser preocupação de segmentos outros, como é o caso da psicologia. Assim, o estudo do comportamento aparentemente dúbio das pessoas que querem a realização de um benefício para si, mas recusam a participação nos efeitos negativos dessas benesses, tem sido ocupação dos psicólogos que analisam o consciente e o inconsciente dos grupos. Pela identidade de objeto de estudo, essa abordagem conjuga-se a estudos da sociologia e até mesmo da saúde pública, entendendo-se que a repulsa coletiva ocorre em razão da percepção social do risco, advindo as condutas de autodefesa. Assim é o pensar de Nicholas Freudenberg (Not in our backyards: community action for health and the environment. Nova York, Monthly Review Press, 1984).
Além dos desagradáveis remanescentes ambientais, existem obras sociais que se submetem ao mesmo processo de recusa acima apontado.
Como reage a sociedade, por exemplo, para receber um egresso penitenciário? Seria a coletividade ingênua ao ponto de imaginar que os desviados comportamentais são, exclusivamente, “um problema do Estado”, não dizendo respeito aos cidadãos que se qualificam “de bem”? Mesmo que em uma análise mais racional a conclusão seja a de que é ônus também da sociedade civil participar da recuperação dessas pessoas, é de fácil constatação a claudicância dos particulares quando instados a assumir o papel de partícipe da execução penal, talvez porque a sociedade não foi claramente convidada a discutir a missão que lhe caberia no contexto da ordem inaugurada com a Lei 7.210, de 10 de julho de 1984, a Lei das Execuções Penais – LEP. Referido diploma, no seu artigo 4º, prevê expressamente a cooperação da comunidade no processo de cumprimento da pena, bem assim na reinserção do egresso carcerário nas atividades laborais e sociais que o esperam no ambiente extramuros da prisão.
Nesse contexto, ofício importantíssimo tem o Conselho da Comunidade, com composição e atribuições previstas nos arts. 80 e 81 da LEP, tocando-lhe a) visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes no âmbito da sua atuação; b) entrevistar presos; c) apresentar relatórios mensais ao juiz da execução e ao Conselho Penitenciário; e d) diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para aperfeiçoar a assistência ao preso.
Mas, será que somente com o funcionamento do Conselho da Comunidade, por mais eficiente que seja, estará atendido o princípio da participação social, gizado no artigo 4º da LEP (“O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.”)? Provavelmente não. Ao Conselho cabe uma tarefa institucional, que tem também externalidades pedagógicas, demonstrando ao corpo social que é possível a interação entre os que cumprem penas e os que tiveram melhor destino.
Não se trata, nessa relação, de um mero gesto de piedade para com os transgressores. Cuida-se, é verdade, de bem mais que isso; de um importante papel na concretização dos objetivos das penas (prevenção geral e específica, reprovação e ressocialização). Esse atuar do Conselho tem muito de orientador político da sua clientela (presos e egressos) para a readaptação comportamental e para a reinserção no meio produtivo.
Cabe ao poder público e à sociedade civil dar as chances reais para a efetiva recuperação dos que estão submetidos a penas ou que saem dos presídios. É no momento do autorizativo judicial para o cumprimento da pena em regime semi-aberto ou da expedição do definitivo alvará de soltura que deve residir uma reflexão coletiva visando à demolição dos preconceitos sinetados pela sigla NIMBY já acima referida.
Para tanto, pouco importa o grau de conhecimento da filosofia dessa recusa coletiva aos “resíduos danosos” dos males para os quais a própria sociedade contribuiu (a falta de educação, da condição de trabalho etc.). Mesmo que o crime não tenha somente como fatos geradores esses influxos sociais (vide os delitos passionais, que disso independem), haverá sempre um encargo social que não pode deixar de ser resgatado. Em boa parte dos casos o mero encarceramento do infrator não é a melhor solução, inclusive porque um dia a prisão chegará ao fim e o problema aflorará. O paliativo deixará de surtir efeitos.
Achar que a ampliação de vagas penitenciárias ou a construção de novos presídios por si somente devolverá a segurança à sociedade é o mesmo que conjeturar que a construção de novos cemitérios (ou a expansão dos atuais) resolverá os problemas de saúde pública de uma Nação. Há que existir harmonia entre a contenção das causas e o as medidas para a diluição das consequências.
É imperativo, portanto, que a sociedade supere os exageros da autodefesa e a crise de abstencionismo e assuma o que lhe cabe nas atividades de recuperação e ressocialização das pessoas que sofrem condenações, estimulando e dando efetividade às chamadas “alternativas penais” (cumprimento de restrições de direitos, trabalhos substitutivos etc.), bem como abrindo caminhos aos que saem do cárcere. Se for omissa, estará apenas alimentando o conjunto de problemas que mais à frente virá atormentá-la. Aí talvez seja tarde, ou pelo menos ineficiente, dizer “não no meu quintal”.
Texto: Ivan Lira de Carvalho é juiz federal em Natal (RN), doutor em Direito, professor da UFRN na graduação e no mestrado em Direito.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15 de janeiro de 2012
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
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