E agora, Direitos Humanos?
O Brasil tem um sistema punitivo em plena expansão. Dados recentes do Conselho Nacional de Justiça indicam que já somos a terceira maior população carcerária do planeta, com 715.655 presos. Ao mesmo tempo, na campanha eleitoral acompanhamos um discurso quase que uníssono, à direita e à esquerda, com propostas de ampliação das penas e criação de novos tipos penais. Candidatos ao Senado e à Câmara dos Deputados disputam acirradamente o discurso que insiste no recrudescimento da legislação para o enfrentamento da violência.
Em suma, não há perspectivas para uma atuação do Parlamento calcada nas ciências penal e penitenciária, menos ainda na criminologia crítica, matérias cuja evolução tem sido significativa, com a produção de conhecimentos que poderiam ser melhor aproveitados na elaboração da norma penal.
De sua parte, essa pauta não se faz presente nos pronunciamentos dos principais candidatos à Presidência da República, o que favorece à continuidade da conjuntura atual, em que o Governo Federal não se compromete com temas afetos aos Direitos Humanos. Matéria do último sábado da edição eletrônica do jornal El País traz um quadro com as poucas propostas dos presidenciáveis, onde não se percebe nada de novo, abstratas e incapazes de provocar mudanças significativas no atual modelo. O destaque positivo que se faz não está nos discursos dos preferidos do eleitorado. Apenas os candidatos Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) acenam, por exemplo, para o fim da “guerra às drogas”.
Enfim, se o quadro atual é assustador, o que se verifica na erupção em que se encontram os presídios brasileiros, com rebeliões e situações de extrema violência, como nos recentes episódios marcados pela tortura e pela decapitação de homens, não se vislumbra mudança no horizonte, diante da opção pela continuidade das políticas autofágicas de encarceramento como solução para os problemas relacionados à violência. Se não se pode esperar mudança por parte do Estado, algumas questões mais imediatas se apresentam para os movimentos de Direitos Humanos, no sentido de uma atuação articulada. Seja diante da tragédia humanitária presente nos campos de concentração e nas masmorras em que se transformaram os presídios brasileiros, seja diante do próprio Estado, incapaz de reconhecer o fiasco de sua política criminal e penitenciária, como devem se posicionar os movimentos de Direitos Humanos?
Assumindo o difícil propósito de indicar algum caminho, como quem pensa em voz alta, imagino que, a par das diversas estratégias de enfrentamento à violação de Direitos Humanos no cárcere, ainda acredito na possibilidade de uma articulação junto às próprias instituições do Estado, mais precisamente junto ao Poder Judiciário, para a busca de soluções. Mas como?! Alguém poderá indagar, em face da atuação muitas vezes omissa, salvo honrosas exceções, também dos órgãos desse Poder, assim como do Ministério Público (faço aqui o mea culpa), diante das rotineiras violações à dignidade humana nos presídios.
O tema, que já não é fácil, torna-se mais complexo pela invisibilidade das violações. A população raramente é informada do que acontece nas prisões, o que se limita a episódios de rebeliões violentas; e nem sempre é chamada a se posicionar criticamente diante do fenômeno, especialmente quanto ao incremento da violência nas cidades, decorrente em grande parte das condições de encarceramento nos presídios.
E se Executivo e Legislativo não assumem a responsabilidade na construção de um sistema penal válido, melhor legitimado e não-violador de Direitos Humanos, ao Judiciário compete garantir os limites na atuação daqueles. Abre-se assim uma janela que talvez permita alguma solução no médio prazo. Em poucas palavras, se Executivo e Legislativo optam por encarcerar pessoas desmedidamente, é o Judiciário quem deverá garantir as balizas para que a política estabelecida respeite limites éticos, a começar da dignidade humana, um dos pilares fundamentais estabelecidos na Constituição para a construção, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, algumas possibilidades se abrem para a atuação dos movimentos de Direitos Humanos, seja mediante provocação aos juízes criminais de todo o país, para que assumam suas responsabilidades nesse processo, que deve ser observado também do ponto de vista histórico, seja mediante provocação ao CNJ, órgão que tem se mostrado sensível aos problemas nos presídios, ou ainda e de forma concentrada, junto ao STF, aqui com destaque para a possibilidade da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
A agenda dos movimentos de Direitos Humanos no Brasil complica-se na mesma medida em que o problema se agrava nos presídios. O ambiente de discussão não é favorável, onde o senso comum e o discurso político oportunista levam ao aprofundamento da crise. Os meios de comunicação de massa nem sempre conseguem se desvencilhar de coberturas sensacionalistas ou alienantes. O debate eleitoral passa longe do assunto. Mas é diante desse panorama que os movimentos sociais devem se posicionar. E agora, Direitos Humanos?
Haroldo Caetano da Silva é mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Goiás e promotor de Justiça em Goiânia
Artigo publicado no jornal O Popular de hoje (30/09/2014). Link para a publicação original: http://www.opopular.com.br/editorias/opiniao/opini%C3%A3o-1.146391/e-agora-direitos-humanos-1.672042
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