quinta-feira, 5 de abril de 2012

Mão de obra carcerária: uma chance para recomeçar

 Pessoas que cumprem penas ou que recém-saíram do sistema carcerário buscam a oportunidade de recomeçar a vida. Mas, para isso, precisam de uma chance de voltar ao mercado de trabalho


“Quando saí da prisão, se você fosse um empregador potencial olhando meu currículo, alguns fatos saltariam à vista: nunca trabalhou honestamente, nunca pagou impostos, sem educação superior, sem profissão, sem habilidade para a retidão, sem carteira de motorista.” A declaração de Louis Ferrante, autor do livro O Poderoso Chefão Corporativo (Saraiva, 2012), é o discurso que muitas empresas usam na hora de argumentar o porquê de não contratar mão de obra carcerária ou de ex-presidiários.
Mas o ex-mafioso e especialista em roubo, que já acertou suas contas com a Justiça, vai além. “Agora, estas são as credenciais que não aparecem no meu currículo: honrado, ambicioso, despachado, homem de palavra, persistente, nunca comete o mesmo erro duas vezes, os amigos lhes confiam a vida, e ele já provou merecer esta confiança.”
Determinado a não voltar para a cadeia, o escritor saiu disposto a mudar de vida. Hoje dá palestras pelos Estados Unidos a adolescentes em situação de risco e outros grupos. Wagner Luiz Gomes dos Santos, 41 anos, não é personagem do livro, mas comprova a teoria de Ferrante. Condenado a um ano e quatro meses por roubo, fez do limão uma limonada e agarrou como pôde as oportunidades que se apresentaram quando conseguiu a liberdade.
Santos aproveitou o tempo que esteve detido, no Espírito Santo, para concluir os estudos. Entrou com a 6ª série do Ensino Fundamental e saiu, em 2010, com o Ensino Médio concluído. Também participou de cursos profissionalizantes para ampliar as chances de competir por uma vaga. Atualmente, é jardineiro do Fórum de Guarapari, no estado capixaba. A meta, agora, é partir para a universidade e realizar o sonho de se tornar engenheiro mecânico, algo que só será possível graças à possibilidade que teve de recomeçar. “É preciso realmente mostrar aos empregadores a vontade de mudar de vida”, garante Santos. “Entrei lá de carne e saí de ferro.”
A lista de apenados e ex-presidiários à espera de uma recolocação é grande, e exemplos como o de Santos motivam a luta dessas pessoas no mercado de trabalho. A população carcerária no Brasil é de aproximadamente 500 mil presos, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “O principal entrave é o preconceito, e isso não se vence da noite para o dia”, reconhece Luciano Losekann, juiz auxiliar da presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário. “Por mais correta que tenha sido a conduta do preso durante a execução da pena, o fato de ter cometido algum delito é algo praticamente imperdoável para a sociedade. Isso gera grandes dificuldades para essas pessoas conseguirem trabalho”, completa.
Para enfrentar os entraves que impedem as contratações, o CNJ criou o programa Começar de Novo, que mostra as vantagens de ter mão de obra carcerária e de ex-detentos dentro das empresas. “O auxílio ao preso reverte no combate à violência, pois, ao oferecer uma oportunidade, aumentam as chances de a pessoa não voltar a reincidir”, destaca o juiz. Além de colaborar com a redução da criminalidade, quem contrata trabalhadores que cumprem pena nos regimes semi-aberto e fechado tem incentivos legais. As vantagens econômicas são compensadoras, pois o trabalho não está sujeito à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). “Isso desonera o empresário de maneira bem interessante e torna o trabalho prisional atrativo”, argumenta Losekann.

Incentivos legais à contratação

A Lei de Execução Penal (LEP) e o Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/99) estabelecem
os seguintes incentivos ao empresário:
  1. O trabalho do preso no regime fechado e semiaberto não está sujeito ao regime da CLT. Portanto, o empresário fica isento de encargos como férias, 13º e FGTS. Dependendo do piso salarial, a redução nos custos da mão de obra pode chegar a 50%.
  2. A remuneração mínima corresponde a ¾ do salário-mínimo. Normalmente, nos convênios firmados entre empresas e presídios é estipulado um salário-mínimo como pagamento.
  3. Os apenados, enquanto permanecerem nos regimes fechado e semiaberto, são considerados contribuintes facultativos da Previdência e não segurados obrigatórios na condição de contribuintes individuais (Decreto n. 7.054/2009).
  4. Somente são encaminhados às vagas de trabalho externo candidatos selecionados pela Comissão Técnica de Classificação (CTC) de cada unidade penal, a qual é presidida pelo diretor da unidade e composta por equipe multidisciplinar.
  5. O trabalho externo em instituições privadas e órgãos públicos é supervisionado pela Administração Penitenciária ou órgão instituído para esse fim, por meio de inspeções periódicas, de forma não ostensiva.
  6. Nas licitações para obras de construção, reforma, ampliação e manutenção de estabelecimento prisional, a proposta de aproveitamento, mediante contrato, de mão de obra de presos, poderá ser considerada fator de pontuação, a critério da legislação estadual ou municipal.
  7. Ao empregador cabe apenas o pagamento de salário, alimentação e transporte, salvo nos casos de contratação com registro em Carteira de Trabalho, hipótese em que o preso tem todos os direitos de um trabalhador livre.
  8. O trabalho dos detentos também é uma ação de responsabilidade social. Ajuda na ressocialização assim como na redução da pena – a cada três dias de trabalho o detento tem um dia a menos de pena a cumprir.
  • Portanto, contratar um apenado pode custar menos do que um empregado comum, especialmente naqueles estados que instituem incentivos fiscais às empresas contratantes. Esse tipo de iniciativa pode contribuir muito para a diminuição da reincidência e para a reconstrução da vida desses seres humanos.

Desempenho positivo leva à contratação

Os detentos que apresentam bom desempenho durante o trabalho prisional muitas vezes conseguem permanecer na vaga depois que saem de trás das grades. “As empresas contratam quando verificam a dedicação desses funcionários”, comemora Luciano Losekann, juiz auxiliar da presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.
A expectativa é que aumente a demanda por mão de obra prisional à medida que o incentivo legal é dado e, ao mesmo tempo, percebe-se a redução dos índices de reincidência daqueles que têm uma chance de trabalhar. Empresários que adotaram a iniciativa recomendam. É o caso de Joarez Venço, diretor-presidente da Renova – Lavanderia Industrial, localizada em Cachoeirinha.
Desde 2005, a Renova firmou parceria com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe-RS) da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul e implantou o Programa de Ação Conjunta (PAC).
Atualmente, a iniciativa dá oportunidade a detentos do regime semiaberto do Instituto Penal Irmão Miguel Dario, em Porto Alegre. “Optamos por contemplar aqueles que realmente manifestam a vontade de mudar”, conta Venço sobre a seleção interna rigorosa feita na casa de detenção.
A Renova é uma das poucas empresas gaúchas que também abre as portas aos presos após o cumprimento da pena. Aqueles que demonstram dedicação e capacidade laboral passam a integrar os quadros depois do indulto. “Dos 51 apenados que trabalharam conosco neste período, 18 foram contratados oficialmente”, informa Venço.
Alguns, inclusive, já foram promovidos de cargo. Com o resultado positivo, a ideia da empresa é estender o projeto para outros estados em que tem operação. O Paraná foi o primeiro a receber a iniciativa, e dá oportunidade para 11 apenados na cidade de Araucária.

Oportunidade que vale ouro

Telmo Wagner, 50 anos, ficou detido 11 meses, tempo suficiente para temer o que lhe aguardava depois de prestar as contas com a Justiça. “Achei que ia perder o emprego, estava muito preocupado”, lembra. Mas a garantia de retomar a vaga que ocupava antes fez a vida ganhar novos contornos. Wagner é um dos funcionários da Odebrecht Infraestrutura e atua na obra de expansão da Trensurb, em Novo Hamburgo.
“Gosto muito de trabalhar na empresa e sei que eles me querem bem, pois faço por merecer”, diz. O conselho de Wagner é taxativo: o primeiro passo é evitar qualquer deslize para não parar dentro de uma casa de detenção. O colega Rogério Alves Mesquita, 26 anos, cumpriu um ano e sete meses de reclusão no Paraná e também temia não encontrar espaço quando entrasse em liberdade. “O meu conhecimento e as boas relações no mercado de trabalho foram fundamentais para minha recolocação”, acredita.
A experiência com Wagner e Mesquita tem tido um retorno muito positivo para a Odebrecht, garante Pedro Reis, gerente administrativo da empresa. “Os operários trabalham com dedicação, são atenciosos e estão sempre procurando aproveitar a oportunidade e se engajar no processo”, afirma.

Projeto luta pela reinclusão de apenados

O programa Trabalho para a Vida, desenvolvido pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tem sido uma ferramenta importante para recolocação de mão de obra prisional no mercado. A iniciativa teve início no ano 2000, em parceria com instituições públicas e a iniciativa privada. A meta é desenvolver as condições necessárias à ressocialização pelo trabalho dos apenados e egressos do sistema carcerário. Além de buscar vagas – de forma individual ou por meio de cooperativas -, o programa também contempla o ensino profissionalizante para qualificar aqueles que querem uma oportunidade de recomeçar.
Ao todo, 135 presos que cumprem pena no Estado estão contratados graças a cinco cooperativas que integram o Trabalho para a Vida, segundo dados divulgados em 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O trabalho inclui a produção de louças e tijolos, prestação de serviços a empresas e órgãos públicos e o cultivo de hortas. O programa funciona em parceria com a Ocergs, Federasul, Susepe/RS e Fiergs, além de outras instituições.
Um dos precursores a integrar o projeto, o empresário Humberto Ruga participa até hoje a iniciativa. Quando começou, no ano 2001, o então presidente da Federasul viu a proposta deslanchar. “O número de presidiários trabalhando era alto”, lembra. Mas, quando a contratação de mão de obra prisional foi taxada com o recolhimento para o INSS durante o governo do presidente Lula, houve uma desistência em massa. “Hoje o projeto está sendo reativado com bastante empresas trabalhando”, comemora Ruga, ao destacar os benefícios oferecidos a quem emprega.
A advogada e conselheira penitenciária Maria Lúcia Médici acompanhou de perto o desenvolvimento da ação e destaca as vantagens para quem investe na contratação de apenados. “Não existe a ocorrência de faltas ao trabalho nem a existência de vínculo empregatício, ou seja, não há encargos trabalhistas”, reforça Maria Lucia, que também integra o Conselho da Comunidade de Porto Alegre, órgão vinculado à execução de penas.
O que falta, segundo Ruga, é um esforço político por parte dos diversos governos. “É mais fácil soltar o preso do que dar trabalho a ele e qualificá-lo”, sentencia. O primeiro passo, garante, é capacitar os
detentos para que possam ocupar as vagas disponíveis. A falta de preparo já representou a perda de oportunidades, como o protocolo de intenções firmado com o Sinduscon-RS, em 2010, que ofereceu 2 mil vagas na área da construção civil. “Pouquíssimas foram preenchidas pela falta de preparo”, lamenta.

Cooperativa ajuda a encontrar recolocação

Integrar para não reincidir. Quando ouviu a frase pela primeira vez, Francisco Oderich, diretor-presidente da Jackwal, decidiu que podia contribuir para que o lema fosse colocado em prática. Procurado pela Laborsul, cooperativa social que desde o ano 2000 busca oportunidades no mercado de trabalho para apenados, resolveu investir. “Penso que essas pessoas, se tiverem uma oportunidade, não voltarão a praticar crimes”, diz. “Então, me pareceu evidente apoiar a causa.”
O empresário resolveu conhecer de perto o sistema penitenciário e ficou impressionado com a determinação de quem queria aprender um novo ofício. Passou então a terceirizar tarefas como a montagem de acessórios para banheiro. “Quem comanda as empresas deveria entender o que significa para essas pessoas a oportunidade de estarem reinseridas à sociedade e, com isso, tomar outro rumo em sua vida”, defende.
A Cooperativa Social Laborsul segue em busca de outros parceiros. O foco de atuação são os internos do Instituto Penal Irmão Miguel Dario, que cumprem pena em regime semi-aberto. “A seleção leva em conta pessoas que tenham aptidões para trabalhar, que queiram se reintegrar. Estão excluídos do processo pedófilos e estupradores”, explica Luiz Bayard Souza, presidente da Laborsul.
Além de procurar postos para os presos, a cooperativa também tenta recolocar no mercado de trabalho os egressos do sistema penitenciário. Além da oportunidade de trabalho, eles ganham acompanhamento psicológico, assistência social e cursos de capacitação. “Agora, estamos preparando trabalhadores para a construção civil”, conta Bayard. A principal dificuldade, segundo ele, é a falta de recursos financeiros para a cooperativa dar conta de suas obrigações. O orçamento necessário para manter as 16 vagas disponíveis é de R$ 3 mil mensais. No entanto, somente cinco presos trabalham atualmente na cooperativa.
J.D., 25 anos, é um dos selecionados, e está há um mês na Laborsul, onde monta cerca de 2 mil acessórios para banheiro por dia. A rapidez com que deixa as peças prontas impressiona quem acompanha o vai e vem das mãos. “É uma ótima oportunidade, estou ganhando experiência em outra área”, diz o pintor. Os planos para quando conquistar a liberdade incluem um serviço com carteira assinada.
Também há um mês na Laborsul, K.F.M., 27 anos, foi em busca de trabalho dentro da casa de detenção. “Estou 100% melhor”, comemora. Inscrito no curso de capacitação para a construção civil junto com J.D., espera pela autorização para frequentar as aulas. “Depois, quero formar uma família, casar de novo, comprar um carro e ser feliz.” A cooperativa espera conseguir outras empresas apoiadoras para poder ampliar o número de vagas e reduzir os custos.
A Laborsul faz parte da Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (Faesp), criada em 1997 e pioneira no Brasil no acompanhamento do apenado quando ele entra em liberdade. “O objetivo é atender a quem sai da prisão, mas também temos alguns que já estão fora há quatro, cinco anos, mas ainda precisam de ajuda”, diz a presidente da Faesp, Tânia Sporleder de Souza. “Essas pessoas necessitam de assistência para que não voltem a reincidir”, reforça Tânia. O esforço tem dado certo. Dos 1.050 egressos atendidos pela Faesp, 85,35% entre 2010 e 2011, 85,35% não voltam a praticar crimes.

Susepe quer potencializar oportunidades aos presos

Cursos profissionalizantes são desenvolvidos de acordo com a necessidade do mercado. SUSEPE/DIVULGAÇÃO/JC
O Rio Grande do Sul conta hoje com mais de 260 empresas conveniadas à Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe-RS) da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Através do Protocolo de Ação Conjunta (PAC), quase 5 mil postos de trabalho estão disponíveis para os apenados. “Esse número pode crescer com o boom da construção civil e a Copa do Mundo de 2014. Esperamos um retorno muito favorável em termos de trabalho”, afirma Liliane Therhorst, diretora do Departamento de Tratamento Penal da Susepe-RS.
Para o detento, além da oportunidade de aprender uma nova profissão e ganhar uma colocação no mercado, o trabalho traz outras vantagens. É que cada três dias trabalhados reduz um dia na pena. “Os presos têm correspondido favoravelmente”, diz Liliane. Para se ter uma ideia, em 2010, o número de apenados em atividade graças ao PAC chegava a 2.210 pessoas. Em 2011, esse montante chegou a 2.901 pessoas, um crescimento significativo.
O PAC foi implantado em 1984 como forma de potencializar as oportunidades de reintegração. A Susepe-RS busca a parceria com empresários e também convênios com prefeituras para que possa ampliar o número de ofertas de trabalho aos presos. “A prefeitura de Novo Hamburgo ofereceu 70 vagas na área de manutenção e conservação, e todas estão ocupadas”, conta Liliane. No caso da iniciativa privada, a meta é vincular o detento à sua realidade local. Toda a rotina de trabalho é acompanhada por técnicos da Susepe, que ajudam a pessoa a se adaptar às novas regras.
A Susepe-RS também investe em cursos de capacitação, dentro das casas de detenção, para qualificar os presos. O Senai-RS é um dos parceiros, e tem desenvolvido cursos profissionalizantes nos presídios. Ali, os internos aprendem sobre elétrica predial, assentamento de azulejos e hidráulica, algumas das profissões em que falta mão de obra especializada. “Esse processo é muito importante, pois o preso sai do regime fechado para o semiaberto munido de qualificação para concorrer a uma vaga”, argumenta Liliane. O resultado, diz ela, é positivo não só no cumprimento das penas, mas também quando o detento conquista a liberdade, já que muitos acabam sendo contratados pelas empresas.

Fonte: Jornal do Comércio
Texto: Cristine Pires
GLÁUCIO DETTMAR/AGÊNCIA CNJ/DIVULGAÇÃO/JC

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