Criminalidade organizada e democracia (“Lectio doctoralis” de Ferrajoli)
LUIZ FLÁVIO GOMES
(@professorLFG)*
ALICE BIANCHINI**
Título de “doutor honoris causa” em
Tucumã. O professor Luigi Ferrajoli, no dia 27.06.12, ao receber o
título de “Doctor Honoris Causa”, da Universidad Nacional de Tucuman
(Argentina), cuidou em sua “lectio doctoralis” do tema “criminalidade organizada
e democracia”, que sintetizaremos em seguida, agregando algumas observações e
anotações nossas.
Perguntas fundamentais (mapa da
exposição). Começou formulando algumas perguntas fundamentais: 1ª) Como
é a criminalidade organizada?; 2ª) Como vem funcionando o sistema penal para
promover o seu controle? e 3ª) Qual seria uma resposta racional contra a
criminalidade organizada?
Organizações poderosas. Em relação à primeira indagação começou afirmando que o crime organizado é poderoso e, ademais, chega a atentar contra as raízes do Estado e da Democracia, ou seja, da possibilidade de uma salutar convivência social [esse, hoje, é o caso do México, por exemplo]. Ele afeta o funcionamento normal das nossas sociedades [a América Central assim como alguns territórios brasileiros vivem diariamente esse drama], em razão, sobretudo, das suas ligações com as autoridades públicas bem como com a criminalidade ordinária.
Três grupos. Delineou três
grupos de crimes organizados: 1º) o vinculado com os poderes criminais privados
(organizações criminosas privadas) [do tipo PCC, por exemplo], 2º) o decorrente
dos poderes econômicos (criminalidade organizada das empresas – [empresas
construtoras no Brasil, por exemplo] -, dos bancos etc.) e 3º) criminalidade
organizada estatal (dos poderes públicos, dos políticos, dos juízes, policiais,
fiscais etc.).
Características do crime
organizado. O crime organizado tem hoje um peso financeiro e econômico
sem precedentes, visto que possui caráter global (muitas vezes) e conta,
ademais, com um poder destrutivo impressionante [destruição do ser humano, da
natureza, das condições necessárias para a vivência democrática etc.]. Estamos
neste momento experimentando a mundialização da economia e do mercado, sem a
correspondente globalização da Justiça assim como dos direitos e garantias
fundamentais. A fortaleza do crime organizado (terrorismo interno ou
internacional, máfias, narcotraficantes, exploração ilícita dos jogos etc.) ao
se deparar com a fraqueza do sistema jurídico de controle, sobretudo
internacional, conduz a um cenário de regressão social onde vigora a “lei do
mais forte” (a lei selvagem).
Primeiro grupo (exploração da
miséria). Uma característica relevante do primeiro grupo de crime
organizado (organizações criminosas privadas) consiste na exploração da miséria,
ou seja, uso dos pequenos delinquentes [que, constituindo apenas “corpos” –
braços, pernas e anatomia -, sem qualquer patrimônio cultural ou econômico ou
social, são exploráveis, torturáveis, prisionáveis e extermináveis]. O crime
organizado privado, especialmente no que diz respeito ao mercado das drogas ou
das migrações, explora a mão de obra barata do miserável, do necessitado,
otimizando seus lucros e benefícios [os que contam com maior espaço de liberdade
em razão dos seus poderes exploram os que são mais vulneráveis - jovens
desempregados, ex-presidiários etc. -, que ostentam menos espaço de liberdade –
Ruggiero 2005].
Segundo grupo. O segundo grupo
de crime organizado (decorrente dos poderes econômicos nacionais ou
transnacionais) atua contra o meio ambiente, no mundo financeiro etc. Os grupos
internacionais são claramente favorecidos pelo “vazio de direito público” no
plano global, onde então esses poderes se sentem “desregulamentados” [sobretudo
sob o império do neoliberalismo], havendo inversão da equação Estado/mercado, ou
seja, o mercado fala mais forte que o próprio Estado, as empresas competem com
este último, daí decorrendo a exploração da miséria em dimensão globalizada, da
saúde pública etc. Sublinhe-se que esse vazio de direito público, no caso do
Brasil, é mais preocupante ainda, visto que até hoje não temos, na lei, o
conceito de crime organizado (consoante reconheceu o STF no HC 96.007-SP).
Terceiro grupo. O crime
organizado dos poderes públicos desviados é o mais infame de todos, porque
envolvem crimes contra a humanidade, torturas, desaparecimentos forçados,
sequestros, guerra e, sobretudo, corrupção. A mais séria ameaça contra a
democracia é a emanada desses grupos organizados, que sabem fazer amplo uso da
mimetização dos capitais ilícitos, ou seja, sabem, tanto quanto os poderosos
econômicos, mesclar dinheiro lícito com dinheiro ilícito, dando aparência de
legalidade para todo o capital. A corrupção contraria todos os fundamentos da
democracia (transparência, legalidade, moralidade etc.). Afeta de modo grave a
esfera pública assim como os princípios democráticos. O bem jurídico que está
jogo, quando se trata de crime organizado que envolve o poder público, é a
própria democracia, ou seja, o Estado de Direito. São os fundamentos dos bens
públicos que entram em crise, nesse caso. A capacidade intimidativa e corruptiva
do crime organizado afeta, ademais, a própria função pública de proteção e de
garantia. Ela proscreve a garantia das garantias, que é a função protetiva
jurisdicional.
Segunda premissa. No que
concerne à segunda indagação (relacionada com a capacidade do sistema penal para
controlar o crime organizado) o balanço, diz Ferrajoli, é negativo. Algum tipo
de mudança na estrutura do direito era previsível para fazer frente às
organizações criminosas. E tais mudanças aconteceram em muitas legislações. Mas
vieram com características irracionais e classistas (discriminatórias).
Incrementaram a seletividade do sistema penal, ou seja, a perseguibilidade
prioritária dos pobres, garantindo-se a impunidade dos poderes fortes.
Dupla involução. Uma dupla
involução cabe ser mencionada: (a) a legislação e o funcionamento do sistema
penal garantiram a impunidade da corrupção dos poderosos, seja despenalizando
alguns crimes, seja permitindo a prescrição; (b) dirigiram suas forças contra os
mais débeis (pobres), aumentando penas, endurecendo os regimes da execução,
criando crimes infundados relacionados com a migração clandestina, com o que
forjou “a pessoa penalmente ilegal”; trata-se de uma legislação demagógica,
típica do populismo penal, fundada no medo, com alta dose de ineficácia, o que
coloca em xeque a função dissuasória da pena.
A impunidade dos poderosos é criminógena. De
outro lado, a legislação penal repressiva transmite uma mensagem ideológica
nefasta [vinculando, muitas vezes, o delinquente apenas com imagem estereotipada
difundida pela criminologia midiática]. O conceito de segurança divulgado
amplamente na atualidade não significa segurança dos direitos sociais. Segurança
é igual segurança pública, cujas medidas se voltam contra “bodes expiatórios”,
escondendo-se grandes tensões sociais não resolvidas. Confunde-se política penal
com política social [menosprezando-se a Justiça social]. Neste cenário de
priorização da segurança policial ou penal duas seguranças se perdem: (a)
segurança dos direitos sociais; (b) segurança da liberdade frente ao poder
estatal.
Terceira premissa. Diante do
fracasso retumbante do sistema penal atual para fazer frente às organizações
criminosas, qual seria uma resposta racional?
1) Direito penal mínimo: o direito penal não pode
ser usado para punir bagatelas, ou seja, só contam com merecimento penal as
agressões graves contra bens jurídicos relevantes. A máquina judiciária não deve
cuidar de coisas pequenas;
2) Direito internacional: no âmbito da esfera
pública mundial impõe-se criar um direito penal transnacional à altura da
criminalidade organizada também mundial. O Tribunal Penal Internacional está
apenas começando suas funções jurisdicionais. Ainda continua muito “saboteado”
[pelos Estados Unidos, por exemplo]. Impõe-se ampliar sua competência para poder
julgar outros crimes: terrorismo, tráfico de armas, tráfico transnacional de
drogas, golpes de Estado etc. São crimes que as Justiças locais não têm
capacidade de julgar. Impõe-se, de outro lado, observar a máxima independência
dos órgãos jurisdicionais e persecutórios. Juízes e membros do Ministério
Público deveriam desenvolver uma espécie de “politização” voltada para aplicar a
lei contra todos [não somente contra os pobres];
3) Direito penal reduzido: é preciso acabar com a
inflação de leis penais, abolir as contravenções penais, contemplar
expressamente na lei o princípio da ofensividade (lesividade), prever a
exigência de representação para os crimes patrimoniais [ao menos no que diz
respeito aos crimes cometidos sem violência], incrementar a previsão e o uso das
penas alternativas e introduzir a “reserva de código” (todos os crimes previstos
num único código), dificultando-se a sua alteração. Diante de um legislador
desordenado, nada melhor que a reserva de código.
As duas sugestões (provocações?) finais
oferecidas pelo professor Luigi Ferrajoli, em sua magnífica “lectio doctoralis”,
foram:
(a) legalização das drogas: a lógica
proibicionista estimula o mercado assim como o crime organizado, até porque o
Estado não tem a mínima condição de fazer cumprir a legislação que ele mesmo
aprova. A legalização controlada pode ser uma boa saída (tal como a que está
sendo ventilada, agora, para a maconha no Uruguai);
(b) fim do comércio e tráfico de armas: as armas
são feitas para matar. A violência, sobretudo com a utilização de armas de fogo,
nos conduz à sociedade natural (selvagem). Se o Estado conta com o monopólio do
uso da força, ninguém mais está permitido utilizá-la [salvo em casos
excepcionais para a defesa da vida, por exemplo]. É preciso vencer a atual crise
da razão jurídica sem ilusões, mas também sem pessimismos. Somos todos
responsáveis pela construção de um mundo melhor.
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e do
atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas redes sociais: www.professorlfg.com.br
** Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em
Direito (UFSC). Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br. Coordenadora do Curso de
Especialização em Ciências penais da Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN
– Instituto Panamericano de Política Criminal. Blog:
www.atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini
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