Resultados do Mutirão do CNJ: Amapá, 1,8 mil presos e um único presídio
LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**
Com um total de 668.689 habitantes, sendo
1.808 presos, o Amapá é o 12º estado mais encarcerador do país,
levando-se em consideração sua taxa de 270,38 presos por 100 mil habitantes e
possui apenas um presídio, cuja construção data de 1981, encontrando-se
atualmente superlotado e desgastado.
Este foi o cenário encontrado pelo Mutirão
Carcerário, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
entre janeiro de 2010 e janeiro de 2011, por meio de inspeções pessoais feitas
por vários magistrados.
De acordo com o Relatório
do Mutirão 2010/2011, o calor amazônico também é agudo no estado, no qual
1.698 homens e 110 mulheres convivem no mesmo estabelecimento
penal, sem camas ou colchões para metade dos detentos.
Em diversas partes do presídio o cheiro de fezes
e urina é muito forte. A segurança é outro problema do local. Segundo o Mutirão,
o desgaste das paredes feitas com tijolos simples facilita a fuga dos
detentos por meio até do uso de uma colher. Em 2010, 170 presos se
evadiram do presídio sem sequer serem notados.
Levantamentos do Instituto de Pesquisa e de
Cultura Luiz Flávio Gomes, baseados nos números do DEPEN
(Departamento Penitenciário Nacional), apontaram que, com 513.802
presos em junho de 2011, o Brasil é o 4º país mais
encarcerador do mundo e o campeão mundial em crescimento
percentual de presos.
Como se pode observar, esta situação nada mais é
do que o reflexo do conjunto de barbaridades existentes nos estabelecimentos de
cada uma das suas unidades federativas (Veja: Brasil: campeão mundial em crescimento de
presos; Brasil
é 4º país mais encarcerador do mundo em números absolutos e Brasil:
Número de presos é 69% superior ao número de vagas).
Diuturnamente os professores, os legisladores, os
juízes e os encarregados (bem intencionados) do sistema prisional falam e
escrevem a respeito da sua própria neurose, consistente na aporia (no
antagonismo) entre as finalidades declaradas da pena de prisão e suas funções
reais (ou seja: entre a teoria e a prática, entre o Estado de Direito e o Estado
de Exceção, entre a civilização e a barbárie). Aquilo que “deveria ser” (local
de ressocialização, de recuperação), não “é”. Nada funciona nas prisões (quando
se tem como válido o paradigma de recuperação). Martinson sentenciou em 1974:
“nothing works”.
O que ensinamos nas faculdades, o que escrevemos
nos livros, o que algumas autoridades mencionam nos seus discursos e relatos, o
que alguns juízes consignam nas suas sentenças, o que está contemplado nas leis,
o que é pregado pelo Estado de Direito não tem nada a ver com a realidade (que é
puro Estado de Exceção). É preciso jogar a máscara fora. Ao acadêmico de
direito, depois de horas e horas de estudos, aulas, seminários, congressos etc.,
basta visitar um presídio para constatar que tudo que ele aprendeu sobre a pena
de prisão (law in books) não tem nada a ver com o mundo das
experiências concretas vividas dentro delas (law in action). Há um
mundo de mentiras que são contadas diariamente sobre as prisões. Todo esse
quadro de barbárie somente pode um dia ser alterado quando as todas as máscaras
caírem.
Comentários do Professor Luiz Flávio
Gomes:
O sistema da crueldade penitenciária espelhado
nos Mutirões do CNJ não é distinto dos abusos e violências exercidos contra
aqueles que são considerados “inimigos”, que são brutalmente torturados pelos
agentes da segurança pública ou mesmo mortos, de acordo com a política do
“gatilho fácil”. A violência intramuros nada mais representa que um
continuum dessa violência extramuros, que só chegou aos níveis
deploráveis de degradação em razão de um grande “consenso social inarticulado”
(Foucault), presente na sociedade punitivista brasileira. Enquanto não
desconstruído o atual sistema financeiro-econômico fundado na revolução
ultraliberal dos anos 80 não se pode esperar nenhum tipo de alteração na
política neoconservadora atual. O sistema da crueldade prisional é o espelho
visível mais fidedigno da ideologia excludente e hegemônica ultraliberal, que
vem aprofundando ou conservando desigualdades profundas que marcam os tecidos
sociais de maior parte do planeta. A crise institucional e estrutural do sistema
prisional brasileiro, cada vez mais reveladora da política de extermínio, ao
mesmo tempo em que torna mais que evidente o quadro de desigualdade e de
seletividade, pode se constituir em fonte inspiradora de uma aguda mudança nas
políticas públicas que o criou, que o sustenta e que o agrava a cada dia. Os
Mutirões do CNJ corajosamente mostram essa verdadeira latrina institucional, mas
alterações de fundo não temos visto em nenhum governo, desde que cessada a
ditadura. Parece, de qualquer modo, totalmente impensável imaginar qualquer tipo
de melhora nas atuais circunstâncias hiperpunitivistas. Bastaria, no entanto,
cumprir o Estado de Direito vigente, que se mostra muito mais formal que
material. Continuamos na prática cultivando a barbárie, apesar de contarmos
(teoricamente) com um Estado de Direito bastante civilizado. Impõe-se
democratizar, humanizar e civilizar o sistema econômico, político, institucional
e prisional, adotando-se outras políticas públicas fundadas na não-violência, na
proibição da tortura (tal como previsto na Convenção contra a Tortura da ONU) e
na eliminação do extermínio. A sociedade brasileira não pode dar qualquer tipo
de apoio para a política criminal da intolerância frente aos excluídos,
cabendo-lhe dizer não à manipulação da opinião pública por meio da cultura do
medo e da demagogia hiperpunitivista. A solução para nossos graves problemas de
insegurança só pode um dia ser alcançada mediante a radical mudança de
mentalidade, da política econômica, da educação etc.
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz
Flávio Gomes e co-diretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983),
Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me no facebook.com/professorLFG, no
blogdolfg.com.br, no twitter:
@professorLFG e no YouTube.com/professorLFG.
**Advogada e Pesquisadora do Instituto de
Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.
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