terça-feira, 12 de junho de 2012

Estado é conivente com humilhação de preso pela imprensa

Kenarik Boujikian: Estado é conivente com humilhação de preso pela imprensa
publicado em 8 de junho de 2012 às 20:36


Desembargadora Kenarik Boujikian: “Ninguém, muito menos a polícia e as demais instituições estatais podem expor uma pessoa de forma  humilhante, seja ela quem for, seja ela suspeita ou autora de crime” por Conceição Lemes


Em 10 de maio, o programa Brasil Urgente Bahia exibiu, e a Band reprisou nacionalmente, a matéria Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência, da repórter Mirella Cunha.


Repugnante. Ultrajante. Degradante.Porém, só a partir de 21 de maio, quando o vídeo caiu nas redes sociais, o episódio ganhou repercussão nacional.

O jornalista e blogueiro Renato Rovai foi o primeiro a denunciar a barbaridade:  A repórter loira, o suposto negro estuprador e uma sequência nojenta.

Um grupo de jornalistas enviou carta aberta ao governador, ao Ministério Público e à Defensoria Pública do Estado condenando os abusos de programas policialescos na Bahia.  O Ministério Público Federal decidiu investigar o caso.

Indignado, o baiano Gerson Carneiro, leitor do Viomundo e defensor de causas lúcidas e injustiçadas, nos mandou o link do vídeo, com esta mensagem:

“Poxa, independentemente de qualquer culpa do rapaz, isso não se faz. Todos os preconceitos estão aí. Um negro, pobre, acusado de estupro, sem advogado, algemado, acuado por uma loira detentora da situação naquele momento. O rapaz indefeso responde ingenuamente aos deboches da moça. Jornalismo tinha que ter um órgão regulador como tem Direito, Medicina, Engenharia, Arquitetura…”

Dias depois, Rovai fez outra denúncia: novo vídeo do caso Mirella-Band compromete apresentador  Uziel Bueno, famoso na Bahia pela sua agressividade.



Rovai observa:
O vídeo tem  montagens típicas de internet, como repetições das falas e legendas, mas deixa evidente e claro que Uziel Bueno é tão responsável quanto Mirella Cunha neste caso.
Num primeiro momento, Uziel  insinua com dois dedos que vai fazer o exame de próstata em Paulo Sérgio. Depois, com uma folha de sulfite enrolada simulando um pênis, repete as provocações.

Mandamos os dois links  à doutora Kenarik Boujikian Felippe, que é co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para  a Democracia (AJD), desembargadora no Tribunal de Justiça de São Paulo e ex-membro do Conselho de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
“É pior do que havia lido”, reagiu, no ato. Daí nasceu a nossa entrevista.

Viomundo – Se tivesse de dar uma nota para a entrevista feita pela repórter da Band e os comentários do apresentador do programa, que também é jornalista, qual seria?
Kenarik Boujikian  — Zero para o Jornalismo, zero para o Estado.
Viomundo — Por quê?
Kenarik Boujikian – O Jornalismo e o Estado não cumpriram a regra essencial da Constituição Federal: a dignidade humana é fundamento da República, que se constitui  em um Estado Democrático de Direito.
É inaceitável, em pleno século XXI, um jornalista  tratar um ser humano sem o menor respeito, como se estivéssemos na Inquisição. Se  jornalistas, com a co-responsabilidade das empresas para qual  trabalham,  atuam com este proceder, só o fazem porque existe a conivência dos órgãos de Estado.
Viomundo — Legalmente, a polícia pode expor um preso assim?
Kenarik Boujikian — Ninguém, muito menos a polícia e as demais instituições estatais podem expor uma pessoa de forma  humilhante, seja ela quem for, seja ela suspeita ou autora de crime. A nossa Constituição Federal, no artigo 5º,  assegura aos presos o respeito à integridade física e moral e o direito de personalidade.
No tocante ao Jornalismo, este repulsivo episódio, me faz lembrar as palavras de Francisco José Karam (Jornalismo, Ética e Liberdade):
É necessária a defesa da “vinculação da realização ética da profissão com medidas efetivas para a democracia informativa nos meios de comunicação, incluindo políticas que favoreçam a segmentação do mercado, a diversificação da propriedade, o controle social sobre a mídia existente hoje e o acesso plural aos meios”.
 Sem essas medidas, dificilmente os graves problemas pelos quais passam o Jornalismo brasileiro serão superados.
Viomundo – No Brasil, nós temos o Código de Ética, que lista uma série de deveres para os jornalistas.
Kenarik Boujikian – O que torna mais grave esse episódio. De acordo com artigo 6º do Código de Ética, é dever do jornalista, entre outros:
I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
V – valorizar, honrar e dignificar a profissão;
VIII – respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão;
X – defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito;
XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias;
Como não bastasse isso, dita o artigo 9º  do  mesmo Código de Ética, que a presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística.
As imagens e o conteúdo da entrevista demonstram cabalmente que foi feita tábua rasa desses princípios, pois o que todos viram foi barbárie.
Viomundo – Por que a Justiça faz vista grossa a esses abusos?
Kenarik Boujikian – Não se pode generalizar, mas, infelizmente, frequentemente, os delegados abrem as portas das delegacias e permitem que os jornalistas tenham contato direto com as pessoas detidas. Escancaram a entrada dos distritos policiais para que jornalistas violem  direitos primários, sem qualquer cerimônia, com plena aquiescência.
Os promotores de Justiça  e os defensores públicos não atuam em defesa do Estado e Direito, exigindo medidas do Judiciário para que esta conduta cesse ou não fique impune. Assim, o Judiciário permanece inerte e  com tal omissão atesta  a validade dessas condutas.
Interessante que, na mesma semana em que as redes sociais mostraram a sua indignação com esta entrevista humilhante, vimos, na chamada CPI do Cachoeira, outra pessoa ser inquirida e fazer uso do seu direito constitucional de permanecer em silêncio. Esse é direito sagrado, fundamental. O que se espera de um jornalista é que, no mínimo, atente a isso.
Qual a diferença entre esses dois casos? O jovem que foi exibido e humilhado para todos verem, inclusive seus familiares, era negro, de baixa escolaridade e certamente não tinha condições de contratar advogado nem lhe foi disponibilizado um defensor público. Na Bahia, como em outras unidades da federação, o número de defensores públicos é irrisório perto da demanda.
O outro tinha advogado constituído, estava em outra esfera econômica/social/política. Só que todos os cidadãos, sem exceção, têm  direito à orientação por advogados ou defensores públicos para só depois se manifestarem. E isso – atenção! — em qualquer espaço.
Viomundo – Ou seja, há uma conivência do Estado. Por quê?
Kenarik Boujikian –Em certa medida, esta conivência estatal é reflexo da ditadura civil-militar que o Brasil viveu.  Naquele período, o Estado elegeu como seus inimigos aqueles que queriam outro país. Contra eles, tudo era possível, pois inimigos não são considerados  pessoas, apenas inimigos  e  como tais não possuem o atributo da dignidade, assim foram torturados, desrespeitados, desaparecidos e assassinados.
No dias de hoje, como legado daquela cultura, os inimigos eleitos pelo Estado e também  pela mídia são os pobres e marginalizados, tratados como se coisas fossem.
Também repercute, em caráter individual, o desenvolvimento moral das pessoas que exercem poderes de Estado, que não conseguem se colocar na posição do outro. Não conseguem usar o “véu da ignorância” e se colocar na posição das outras pessoas. Não conseguem ver os que são diferentes de si por certas circunstâncias, como pobreza, pouca instrução, negros, como seus iguais, possuidores dos mesmos atributos. Se conseguissem fazer este exercício, não atuariam de modo perverso.
Viomundo – Existe alguma legislação em relação à exposição de pessoa presa?
Kenarik Boujikian  –  Na Justiça paulista, há cerca de três décadas, o magistrado José Gaspar Gonzaga Franceschini,  na ocasião Corregedor da Polícia e dos Presídios, por meio de portaria,  inaugurou a proibição para impedir que fosse feita exposição dos presos. Depois, o corregedor Geraldo Pinheiro Franco e outros juízes da capital seguiram esses nortes.
Foram medidas administrativas e não jurisdicionais, que bem poderiam servir de  inspiração para as Corregedorias Gerais de todo o Brasil  ou mesmo para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ),  de modo que todas as situações prisionais fossem alcançadas.  É para que pessoas sujeitas ao poder estatal — sob custódia do Executivo e Judiciário –  não sejam expostas, observando que, por vezes, só exposição delas já caracteriza a execração.
Agora, não expor o preso não significa que ele não possa dar entrevista.  Com certeza, ele pode ter interesse em fazê-lo. Mas deve ser de forma verdadeiramente consentida  e somente depois de conversar com seu advogado/defensor, que poderá  dizer quais os direitos que lhe estão assegurados.
Viomundo – Nessa altura, alguns vão questionar: isso não cercearia a liberdade de imprensa? 
Kenarik Boujikian  —  Os direitos de expressão, informação e imprensa são direitos interligados. Em 1776, portanto há 236 anos,  a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia, nos EUA, reconheceu explicitamente a liberdade de expressão através da imprensa.
Em 1791, a Emenda número 1 da Constituição dos Estados Unidos da América garantiu este direito. E em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão contemplou esses direitos estabelecendo:
“A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo todavia pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em lei”.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em seu artigo 19, acolheu tais direitos e também expressamente o direito de informação. Destaco ainda: o artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966; o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; e o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica.
Todo o conteúdo  de normas  internacionais, acrescido dos princípios constitucionais,   exige a conduta ética do jornalista. Isso implica reconhecer que a dignidade  que cada ser humano carrega é o limitador da sua atividade.
Logo, são inadmissíveis ironias, chacotas, humilhações, preconceitos, desrespeitos, gritos, ironias, gozações. Só pode entrevistar a pessoa sob custódia dentro desses padrões. Do contrário, o jornalista estará violando o direito do indivíduo entrevistado e de todos nós.
Viomundo – O que fazer?
Kenarik Boujikian — É preciso encontrar soluções fora do Sistema de Justiça, que deve ser o último patamar a ser perseguido para a concretização dos direitos.
Outras esferas, mais efetivas e gerais,  devem atuar para que o sistema de liberdade de expressão, pensamento e imprensa funcionem para o aprimoramento  da democracia e do ser humano.
O Ministério das Comunicações, por exemplo,  possui  prerrogativas no sistema de concessão de TVs, mas é absolutamente omisso na tarefa de resguardar os direitos de cidadania.
Também é necessário pensar na criação de mecanismos  de controle social  contra práticas discriminatórias e violadoras  dos direitos humanos praticadas pela mídia. Isso já existe em outros países, como a França, e não é absolutamente sinônimo de censura .
Espero que esse episódio da Bahia seja o estopim para uma maior reflexão sobre a necessidade de caminhos regulatórios  da mídia que garantam a liberdade de imprensa no mesmo patamar da defesa dos direitos dos cidadãos, que não podem ser aviltados, quando lhe tocam o espaço da dignidade.

Fonte: Viomundo

0 comentários:

Postar um comentário