Pernambuco: presídios controlados pelos presos
LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**
Ocupando a 10º colocação dentre os estados mais
encarceradores do país, com uma taxa de 287,40 presos
para cada 100 mil habitantes (análise realizada pelo Instituto de
Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes, com base nos números do DEPEN
– Departamento Penitenciário Nacional), o estado de
Pernambuco possui uma “cultura carcerária” ilegal
peculiar.
De acordo com o retratado pelo Mutirão Carcerário
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
realizado entre janeiro de 2010 e janeiro de 2011, quem controla as
prisões pernambucanas são os próprios presos; um costume antigo e até
“eficiente”, que conta com o aval do próprio Estado.
Em Pernambuco situa-se o maior presídio do país:
Aníbal Bruno, descrito no Relatório
do Mutirão como uma “cidade medieval”. Com capacidade para 1.400
detentos, o estabelecimento abriga cerca de 5 mil presos. Nele,
são os próprios detentos que
possuem as chaves das celas e controlam quem entra e quem sai dos
recintos.
Ali o controle do Estado é mínimo e os
agentes penitenciários são poucos. Como uma espécie de “tradição
carcerária”, um dos detentos, conhecido como “chaveiro”, em geral
processado ou condenado por homicídio, é quem legitimamente
controla e ordena o presídio, recebendo, para isso, um salário mínimo do
Estado.
É ele também quem define o responsável pela venda de drogas no
estabelecimento.
São os próprios presos que igualmente
cuidam do comércio de alimentos nas 14 cantinas criadas no presídio, na qual os
vendedores ambulantes são os próprios reclusos. Aos domingos, a
unidade recebe visitantes (que entram livremente no local), chegando a
assemelhar-se a um bairro em confraternização.
Não bastasse esta “desordem organizada”, o
sistema carcerário de Pernambuco também padece de uma absurda superlotação, dada
a ineficiência judiciária do estado.
Na casa prisional de Palmares, foram
encontrados 540 detentos onde cabiam 74. Já em Iguaçu,
havia 2.363 detentos numa unidade planejada para 426 presos. Em
todos os locais, os presos tinham que dormir no chão, nas calçadas,
corredores, buracos e até em um canil.
O Mutirão constatou ainda que 85% dos
18,3 mil processos analisados não continham cálculo de pena dos presos.
Em meio a esse caos, 956 presos receberam o benefício da liberdade
condicional.
Assim sendo, de forma comodista e temerária o
estado pernambucano compactua com a transferência de suas responsabilidades
àqueles a quem deveria tutelar, controlar e fiscalizar.
Comentários do Professor Luiz Flávio
Gomes:
O que acontece nos presídios de Pernambuco (assim
como em alguns territórios dominados pelo tráfico, no Rio de Janeiro, por
exemplo) é que se chama de Estado Paralelo, que não se confunde (evidentemente)
com o Estado de Direito nem com o Estado de Exceção. No Estado de Direito há um
conjunto normativo (normas legais, constitucionais e internacionais) que rege o
funcionamento da sociedade, sendo aplicado pelo Estado. No Estado de Exceção o
grupo que está no poder (legítimo ou ilegítimo) afasta a vigência das regras
jurídicas relacionadas com os direitos e garantias fundamentais. Suspende a
vigência dessas regras, aplicando outras, totalmente contrárias ao que
determinam os comandos normativos do Estado de Direito. No Estado Paralelo
algumas pessoas governam determinado território conforme suas regras. Criam as
regras, delimitam o território e comandam o funcionamento dessa microsociedade
conforme seus desejos ou ordens (ou caprichos). Essa é a situação dos presídios
(ou de alguns presídios) de Pernambuco, conforme constatação do CNJ.
A questão grave que está por detrás de tudo é a
seguinte: que legitimidade tem a jurisdição (o trabalho dos juízes) nesses
locais governados pelos Estados Paralelos? Se os juízes sabem que estão mandando
pessoas para esses locais, por que continuam fazendo isso, sem nenhuma
contestação? Por que os juízes não se rebelam contra o sistema carcerário
caótico que temos? Até quando esses juízes (há exceções honrosas, claro) serão
responsáveis ou coniventes com essa situação de degradação profunda do ser
humano?
Por que os juízes brasileiros em geral (há
exceções dignas de encômios) aceitam a barbárie em lugar de lutar pela
civilização? Por que não tentam (coletivamente) mudar essa cultura da depravação
e da humilhação? Por que os juízes não lutam pela preponderância do Estado de
Direito assim como das regras mínimas (ao menos) da convivência democrática? Até
quando seus olhos ficarão vendados? Por que não criam jurisprudências e atitudes
alternativas, conformes com os ditames reinantes nos povos mais civilizados? Em
vários momentos históricos muitos juízes (da execução) se negaram a cumprir
decisões judiciais que mandavam as pessoas para as cadeias? Enquanto os juízes
brasileiros não se rebelarem, de forma consciente e civilizada (deixando para
trás a barbárie, apoiada democraticamente pela maioria da população, consoante
um inconstitucional populismo) nada se pode esperar em termos de mudança de
cultura.
Vamos continuar falando e escrevendo sobre o
tema, mas sem a expectativa de qualquer mudança. Porque a solução só pode advir
dos juízes evoluídos, que terão que tomar uma decisão contramajoritária, mas
civilizante (e necessária). Sem o apoio massivo dos juízes nossas vozes são
vozes que gritam no deserto. São os únicos que podem (corajosamente) mudar a
situação caótica e profundamente infame dos nossos presídios.
Durante vinte anos na Itália (como bem recorda
Iñaki Rivera), os juízes dotados de grande coragem e refinada preocupação com a
cidadania, se negaram em muitas ocasiões a executar sentenças condenatórias,
diante das horripilantes e degradantes condições que ofereciam as instituições
carcerárias daquele País. Não se pode imaginar outra atitude dos juízes
brasileiros, para alterar o panorama da infamante e degradante situação
brasileira. Mas esse movimento terá pouco êxito se for isolado. Os juízes devem
atuar coletivamente nessa empreitada duríssima de civilizar nossos costumes e
tradições (de total desrespeito às vítimas e aos presos, que são vítimas do
cruel sistema carcerário nacional).
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz
Flávio Gomes e co-diretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983),
Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me no facebook.com/professorLFG, no
blogdolfg.com.br, no twitter:
@professorLFG e no YouTube.com/professorLFG.
**Advogada e Pesquisadora do Instituto de
Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes
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