Resultados do mutirão do CNJ: Amazonas, 60% dos presos ainda aguardam julgamento
LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**
Pesquisadora: Mariana Cury Bunduky**
Com um total de 5.905 presos e
3.393.369 habitantes (uma taxa de 174,02 presos para cada 100 mil habitantes),
o déficit nos presídios e penitenciárias do estado é de 1.964
vagas.
Na penitenciária de Tefé (antigo prédio
residencial improvisado como prisão), as celas não possuem chuveiro e os presos
se banham com a água que corre de um cano a um tonel.
Na Cadeia Pública de Vidal Pessoa, localizada em
Manaus, há sete homens para cada vaga na ala masculina e o
número de detentas é quase quatro vezes superior à capacidade da ala
feminina.
Este foi o retrato que o último Mutirão
Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
realizado entre janeiro de 2010 e janeiro de 2011. Por meio de inspeções
pessoais feitas pelos próprios juízes, é possível visualizar a situação do
estado amazonense (Relatório
do Mutirão 2010/2011).
Nos estabelecimentos, além de muito calor,
superlotação e condições precárias de vida, há ainda uma agravante:
60% dos presos do estado são
provisórios, ou seja, ainda não foram condenados
definitivamente. Eles aguardam seus julgamentos encarcerados, podendo ainda ser
absolvidos.
Outra barbaridade encontrada foi um
adolescente de 17 anos dividindo cela com presos adultos na cidade de
Parintins. No mesmo presídio, as grades das celas estão soltas, as
paredes balançam, há diversas infiltrações e um grave risco de
desmoronamento da laje sobre os detentos.
Na Casa do Albergado, situada na capital do
estado, tolera-se o uso de drogas e alcool pelos detentos, em prol da
“manutenção da paz” (frise-se que 2.407, ou 41%, dos detentos
respondem por tráfico de enropecentes). Já no Complexo Penitenciário
Anísio Jobim a segurança é tão precária que foram registradas 554 fugas
em 2009.
Assim, além de insalubridade, insegurança e
desumanidade, o sistema carcerário amazonense padece de verdadeira
ilegalidade, além de colocar em risco a vida e a integridade de muitos
seus detentos, os quais, considerada a totalidade, em sua maioria, sequer foram
condenados.
Comentários do Professor Luiz Flávio
Gomes:
A gravidade assim como a desumanidade
institucional que aflige e denigre nosso sistema penitenciário fica cada vez
mais evidente em cada Mutirão realizado pelo CNJ. A essas denúncias dos
magistrados inspetores devemos agregar as dos próprios presos, que diariamente
não só reclamam dos maus-tratos senão também da insegurança em que vivem, típica
de um Estado de Exceção. O pior é que tudo isso não é nada excepcional. Virou a
regra, no sistema prisional brasileiro, que se caracteriza pela crueldade (daí
dizer-se que o preso, no nosso país, não vai para o cárcere para cumprir seu
castigo imposto em uma sentença judicial, sim, para ser castigado, humilhado e
degradado). O sistema de crueldade prisional é inequivocamente antagônico com o
Estado de Direito democrático desenhado pela CF de 1988, assim como com o nível
de civilização pregado pelos tratados de direitos humanos. A degradação e a
barbárie do nosso sistema prisional nos colocam, em termos mundiais, dentre os
países jushumanitariamente mais atrasados.
No sistema de crueldade prisional não vigoram os
direitos e garantias contemplados no Estado de Direito vigente. Como território
das ilegalidades inerentes ao Estado de Exceção, é um sistema governado pela
tortura sistematizada, pelas condições absolutamente desumanas assim como pela
corrupção, que são notas típicas dos campos de concentração, que estão se
transformando em verdadeiros campos de extermínio, sem nenhum tipo de controle
judicial, seja em decorrência do ineficientismo da máquina judiciária, seja em
razão da conivência (explícita ou implícita) desta máquina com a violência
institucionalidade nos presídios. Esse cenário de crueldade e desumanidade não
chegaria aos extremos que chegou sem a cumplicidade, ademais, dos demais poderes
instituídos (sobretudo o político), que vivem embalados (inebriados) pelas
demandas hiperpunitivistas populistas e midiáticas, denotando-se o que Michel
Foucault chamava de “consenso social inarticulado”.
Em alguns centros penitenciários o nível de
degradação chega a tal ponto que as próprias autoridades (e seus agentes) fecham
os olhos para algumas ilegalidades emanadas dos próprios presos (formando-se
territórios de drogas livres, por exemplo). Essa é uma forma de encobrir as
ilegalidades institucionais, destacando-se a violência e o extermínio, que
acabam servindo aberrantemente de “propaganda” para os governantes de mão dura
(que assim procedem em razão do amplo apoio do populismo punitivo).
Quando bem analisada, verifica-se que essa
política prisional rigorosa e degradante, vexatória e inconstitucional, que só
existe em razão da ampla conivência das instituições públicas encarregadas da
segurança, nada mais representa que a penúltima linha da política criminal
populista hoje imperante (a última etapa é de responsabilidade da própria
sociedade que não aceita o egresso). O sistema de crueldade prisional nada mais
retrata que a outra cara da mesma moeda das políticas de segurança reinantes em
toda América Latina fundadas na demagogia punitivista bem como na utilização
massiva e abusiva da prisão preventiva.
Trata-se de um modelo de política criminal
marcado pela exclusividade “penal” e tendencialmente exterminador, que deita
suas raízes em substratos doutrinários e ideológicos ancorados no
neoconservadorismo dos anos 70-80, que é filho do capitalismo ultraliberal
reinante, que tem como “inimigo” um determinado protótipo de “perigoso”: jovem
(de 15 a 29 anos), majoritariamente negro (pardo ou preto), pouco escolarizado,
socialmente desamparado, autor de crimes tradicionais, morador de bairros
pobres, geralmente desocupado, repleto de necessidades, com baixíssimo capital
social, econômico e cultural e que teve carências alimentares na infância.
Quem é esse prisionável? Esse é o “outro” (da
criminologia do “outro”), que não conta com os direitos do Estado de Direito,
sendo altamente vulnerável em razão precisamente da sua periculosidade de autor
ou de classe, e componente, em virtude de se constituir um corpo sem alma (sem
instrução, sem capital cultural, sem habilidades cognitivas), do grupo dos
torturáveis, prisionáveis e mortáveis. O sistema da crueldade prisional joga
suas forças contra um determinado grupo social (excluídos, marginalizados etc.),
é reativo e, justamente por isso, não conta com programas de prevenção ou mesmo
de ressocialização.
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz
Flávio Gomes e co-diretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983),
Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me no facebook.com/professorLFG, no
blogdolfg.com.br, no twitter:
@professorLFG e no YouTube.com/professorLFG.
**Advogada e Pesquisadora do Instituto de
Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes
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